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Aftersun: aquele tipo de filme que fica com a gente semanas

Af.ter.sun – Substantivo / Depois do sol / Loção utilizada na pele após exposição ao sol. 

Porém, o título do filme da diretora, escritora e produtora estreante Charlotte Wells foge, em muito, da tradução literal da palavra. Não estamos, aqui, diante de uma poção causadora de alívio ou conforto. A jovem escocesa pega na nossa mão e nos empurra em um abismo onde o sol raramente brilha.

O jovem pai Calum parte em uma viagem para a Turquia, em um resort modesto de turistas, acompanhado da filha de 10 anos Sophie. Calum, 30 anos, teve a filha ainda adolescente e vive separado da mãe dela, mas, mesmo assim, mantém uma conexão muito forte com Sophie. O amor entre os dois é comovente, apesar do pouco contato que parecem ter nutrido nos anos anteriores. Calum vive em Londres e Sophie mora com a mãe em Edimburgo na Escócia. As férias têm o objetivo de fortalecer ainda mais a relação de ambos e também de ser a comemoração de seus aniversários, os quais são distantes um do outro por apenas alguns dias. Calum fará 31 e Sophie 11.

Aftersun é dirigido por Charlotte Wells. Foto: reprodução.

Essa pequena sinopse, apesar de aparentemente mundana, é o resumo de uma viagem transformadora. Calum, apesar da sua pouca idade, se enxerga no fim de sua vida, sonhando em voltar à adolescência perdida, desiludido com a realidade de um homem adulto que nunca conseguiu seguir algum objetivo concreto. Já Sophie faz o movimento contrário. Entrando na pré-adolescência, ela sonha em crescer rápido, e sua atenção é direcionada aos adolescentes do grupo e ao despertar dos sentimentos adultos como o aflorar da sexualidade, festas e bebida.

Aftersun nos guia por essa jornada misturando realidade, sonho e flashbacks, frutos da memória de uma Sophie adulta, possivelmente passando por uma crise parecida a de seu pai na época, que assiste repetidamente aos vídeos feitos na viagem de infância com o pai. Tudo isso nos é mostrado em forma de imagens rápidas, confusas, misturadas e insinuantes. O estilo provocativo de Wells nos empurra a usar Aftersun como um espelho de nossas próprias relações com nossos pais. O espectador projeta nas memórias de Sophie suas próprias memórias. E isso origina uma infinidade de sentimentos que darão o tom da interpretação pessoa de cada um ao todo da obra.

O sol implacável do balneário turco, o cloro da piscina, o sal do mar, o céu turquesa, as atividades de entretenimento dos turistas, tudo isso é a máscara para o conflito que está sob a superfície – apesar do imenso amor entre pai e filha, a diferença de suas percepções da realidade os torna estranhos mutualmente. A frustração de Sophie com o comportamento do pai fica clara, assim como o profundo desespero de Calum ao tentar ocultar seus demônios da filha.

O ator Paul Mescal, bastante conhecido pelo público por sua espetacular atuação dramática na série Normal People (2020), interpreta Calum da forma mais dolorosa possível. Seus olhos, seus gestos e até mesmo suas palavras nos geram dor. Seu sofrimento é tão palpável e tão sufocante quanto o dia mais quente de um verão sem tréguas. Frankie Corio, como a menina Sophie, sente tudo ao seu redor, seu olhar é alerta, seu corpo reage. Ela sente a angústia do pai, porém, com sua pouca idade, não está aparamentada com os instrumentos para compreender o profundo sofrimento de Calum. As nuances do seu adoecimento, ou a extensão de seu desespero. A Sophie adulta, que nos é mostrada apenas em flashes ou sob luzes estroboscópicas, revisita esses sentimentos e sofre. Sofre pela perda, sofre por não ter conseguido salvar o pai. A viagem à Turquia, como fica subentendido, é o último encontro de pai e filha.

Charlotte Wells declarou ter usado elementos autobiográficos em seu roteiro, que se compõe mais a partir de símbolo do que de palavras. As imagens misturam sonho, realidade e desejo, o uso da música de fundo é sóbrio. O silêncio recebe protagonismo. O elemento contemplativo de sua direção pode parecer lento em algumas passagens, mas no conjunto são momentos de reflexão ou de alívio necessários dado o peso do tema central.

Aftersun é um filme polarizador. Para alguns é o drama mais profundo de 2022, para outros apenas um emaranhado de imagens de uma jovem diretora ainda engatinhando no ofício. Para mim foi um dos filmes mais tristes, profundos e transformadores que já assisti. Aquele tipo de filme que fica com a gente semanas, meses, ou talvez até anos. Aquele tipo de filme que assombra por sua humanidade e sinceridade ao lidar com temas extremamente delicados. Mas também é aquele tipo de filme que talvez não tenhamos estrutura pra assistir mais de uma vez.

Aftersun está nos cinemas brasileiros e na plataforma de streaming Mubi. Já colecionou vários troféus, e ainda receberá muitos outros louros. Estou louca para saber qual será a próxima empreitada de Wells. Um caminho brilhante, certamente, se desenha para a jovem diretora.

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