“A Esposa de Tchaikovsky”: o amour fou de Antonina

Filme é uma produção francesa e russa de 2022, e narra de forma lúdica e poética o amor não retribuído de Antonina Miliukova pelo seu marido – o gênio da música russa Tchaikovsky.
11 de maio de 2023
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Cena do filme, uma co-produção Rússia e França. Foto: Imovision.

Quem nunca escutou, mesmo que involuntariamente em filmes ou comerciais de TV, algum fragmento do balé “O Lago dos Cisnes”, a fantasia “Romeu e Julieta” ou assistiu a uma adaptação de “O Quebra-Nozes”? O autor dessas populares obras, Piotr Ilitch Tchaikovsky, colheu, ainda em vida, os louros de sua genialidade – transitou pela nobreza e pelas altas rodas sociais e intelectuais de seu tempo. Foi aclamado e desfrutava de um número imenso de fãs e admiradores, e era tratado pelo seu entorno com um cuidado destinado a uma joia rara da coroa russa. Não por acaso o genial músico e compositor era um dos protegidos do czar Alexandre II, cuja tia alemã Helena Pavlovna foi uma das fundadoras da Sociedade Musical Russa, instituição que foi responsável, a partir da segunda metade do século XIX, pela ascensão e popularização de diversos artistas clássicos da época.

Mas poucos sabem quem foi Antonina Miliukova. Uma moça da pequena burguesia falida moscovita, com uma família numerosa e, em parte rural, sem nenhuma grande conquista ou dom que colocasse seu nome nos livros de história. O casamento, na prática, foi breve. Antonina e Tchaikovsky moraram apenas 2 meses e meio juntos, porém foram casados no papel até a morte de Tchaikovsky em 1893. Basicamente pela recusa de Antonina de autorizar o divórcio.

Antonina se apaixonou por Piotr à primeira vista em um encontro na casa de amigos em comum. Na época, 1965, o jovem compositor de 25 anos ainda era um mero professor de música em começo de carreira. Ela tinha apenas 16 anos. Tchaikovsky nunca lembrou desse encontro, mas para Antonina ele foi o início de uma obsessão insalubre que a arrastaria para um inferno dentro de sua cabeça – a moça abandonou sua carreira de costureira e passou a estudar no conservatório de Moscou onde Piotr lecionava, fazendo de tudo para conseguir ficar próxima de seu grande amor, o qual nem mesmo percebia sua existência. Após inúmeras tentativas de se aproximar sem sucesso de seu objeto de desejo, Antonina conseguiu se casar com Tchaikovsky. Um episódio que já quando ocorreu foi entendido como um esforço em vão do compositor em ocultar sua homossexualidade, a qual já tinha virado assunto de rumores e fofocas, prejudicando a sua imagem diante da sociedade russa da época.

Tchaikovsky não foi capaz de sustentar a farsa, apesar de apoiar Antonina durante toda sua vida financeiramente, mais como uma forma de preveni-la de relevar o segredo de sua identidade sexual do que devido a algum tipo de apreço, Tchaikovksy e seu entorno detestavam Antonina. E nesse momento as fontes históricas divergem sobre a natureza da jovem russa. Alguns, principalmente os mais próximos de Tchaikovksy, pintam uma imagem de Antonina como sendo a de uma mulher oportunista, ninfomaníaca e narcisista, outros procuram a fragilidade de um amor que cega, e que gera total devoção e subordinação a um ídolo a levando à loucura.

O diretor e roteirista Kirill Serebrennikov (Petrov’s Flu / 2021) preferiu, em sua leitura, mergulhar no mar profundo do louco amor. Sua Antonina, brilhantemente interpretada pela atriz russa Alyona Mikhailova (Chiki / 2020), oscila entre mocinha e vilã, entre esposa virtuosa e devotada e mulher entregue aos prazeres carnais e à superficialidade do título de esposa de um gênio em vida.  Alyona é intensa em todas suas cenas, reais ou imaginadas, parte da realidade de uma mulher russa nas últimas décadas de 1800, ou de seus sonhos e desejos de reconhecimento, fama e dinheiro. Tchaikovksy é incorporado pelo ator norte-americano radicado em Berlim, Odin Lund Biron. Odin nos entrega um gênio torturado pelos seus desejos, mas que em momento algum pensa em sacrificá-los, ou sua arte, para atender aos ensejos sociais estabelecidos. O seu Tchaikovksy é orgulhoso, também narcisista, e intensamente zeloso de sua família e seu círculo de amigos. Ao acusar Antonina de oprimir sua arte e ser a responsável pelo seu bloqueio criativo, Tchaikovksy é carregado imediatamente pelos braços de seus admiradores para um polo seguro, e oposto, ao de sua abandonada esposa. À Antonina resta apenas a crença em um mundo fantástico criado como subterfúgio, onde ela desfruta do amor e de uma conexão com o marido que não é percebida por ninguém, nem mesmo pelo próprio.

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Cena do filme, uma co-produção Rússia e França. Foto: Imovision.

 Como é costume em suas obras, Serebrennikov torna Antonina o centro de tudo na obra. Sua desilusão e decadência é acompanhada pelas mudanças de sons, filtros e cenários. Antonina é o filme, e ela recebe toda a simpatia e empatia de Serebrennikov, mesmo quando ela vive seus momentos mais desesperadores ao cair em um abismo escuro de loucura, miséria e perda. Em sua duração, o longa-metragem segue o caminho previsível da luz até a completa escuridão. O frio russo que sentimos é real, mesmo que estejamos em uma sala de cinema adequadamente climatizada e segura em um país tropical. Alyona nos carrega com ela, quer seja com texto, olhares, ou até mesmo com dança. A amplitude de seu talento nos mesmeriza, nunca houve antes uma Antonina como Alyona, e provavelmente não conseguiremos mais nos desprender de sua intensa entrega nesse papel.

Tchaikovsky lutaria com seus fantasmas e sua sexualidade até o dia de sua emblemática morte por cólera aos 53 anos, a qual se tornou assunto de diversas especulações e conspirações que vão de assassinato até suicídio. Antonina sobreviveu por mais 24 anos após sua morte, sendo que os últimos 20 deles foram passados em um sanatório. A Esposa de Tchaikovksy é uma ópera da loucura. Uma ode ao sonho e ao desejo nunca realizado. É a caminhada de uma mulher engolida pelas expectativas de uma sociedade que venerava os homens e desclassificava as mulheres as empurrando para coadjuvantes e, muitas vezes, obstáculos ao brilho de seus maridos geniais. Uma realidade que gostaríamos de, ainda hoje, ter como algo pertencente ao passado.

Tais Zago

Tem 46 anos. É gaúcha que morou quase a metade da vida na Alemanha mas retornou a Porto Alegre. Se formou em Design e fez metade do curso de Artes Plásticas na UFRGS, trabalha com TI mas é apaixonada por cinema.

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