Um Biógrafo em Detalhes

7 de maio de 2012
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Entrevista com Paulo César de Araújo (PUC-Rio)

Baiano de Vitória da Conquista, mas radicado há vários anos em Niterói, Rio de Janeiro, Paulo César de Araújo, professor do Departamento de Comunicação da PUC-Rio, vem se consolidando como um dos principais pesquisadores brasileiros da Música Popular Brasileira (MPB). Em 2002, lançou “Eu não sou Cachorro, não: música popular cafona e ditadura militar”, que quebrou tabus ao discutir como os cantores considerados “cafonas” eram alvos da repressão durante a ditadura militar no Brasil, além de ressaltar a importância do gênero na História da MPB. No final de 2006, Paulo César deu sequência ao seu trabalho lançando a biografia “Roberto Carlos em Detalhes”, pela Editora Planeta. Em poucos meses, o livro tornou-se um best seller, vendendo mais de vinte mil cópias. O sucesso, porém, foi interrompido por um processo movido pelo próprio Roberto Carlos na 20a Vara Criminal da Barra Funda, na cidade de São Paulo. O cantor, que considera-se o único detentor dos direitos de sua História, chegou a pedir no processo a prisão de Paulo César. Quer saber mais sobre essa e outras histórias? Então, confira nossa entrevista exclusiva com o historiador.

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Paulo Cesar de Araújo é professor na PUC-Rio. Foto: Bel Pedrosarosa.

Bruno Leal: Paulo César, seja muito bem-vindo ao Café História. Começamos falando sobre a absurda proibição de seu ensaio biográfico “Roberto Carlos em Detalhes”, de 2007. Na época, você chegou a correr risco de ter que pagar uma multa milionária e até mesmo de ser preso. Como esse episódio impactou em sua vida pessoal e profissional e em que pé esse imbróglio está hoje?

Paulo César de Araújo: Corri risco não apenas de pagar multa milionária, mas também de ser preso, pois RC pediu minha condenação e prisão no processo criminal. Mas apesar dessas ameaças e da proibição do livro, não me sinto derrotado. A biografia foi escrita, publicada, reconhecida pela crítica e pelo público, se tornou um best seller. Claro que lamento o que aconteceu. Lamento por mim e pelo próprio Roberto Carlos. A esta altura da carreira ele não precisava ter este triste capítulo na sua História. Mas minha advogada continua brigando na Justiça para trazer meu livro de volta. E isto ficará mais fácil quando for aprovada a Lei das Biografias (Projeto de Lei 3378/08), que está sendo discutida no congresso. De autoria do deputado federal Newton Lima, o projeto altera o artigo 20 do Código Civil, tornando livre informações biográficas de pessoas famosas ou de notoriedade pública. Nesse sentido, estou em duas frentes: na Justiça e torcendo para o Congresso aprovar logo a Lei das Biografias.

Bruno Leal: Paulo, a Planeta, editora do livro, acatou a decisão da justiça e lhe deixou desamparado. Como foi a sua relação com a editora antes e depois desta decisão? Hoje, você está sozinho na luta pela publicação do livro?

Paulo César de Araújo: Minha relação com a Editora Planeta foi boa durante todo o processo de produção do livro. A postura da editora também foi positiva no primeiro momento da briga judicial, quando prometeu que seus advogados iriam defender o autor e o livro. Porém, isto não ocorreu. Ela capitulou na audiência de conciliação. É unânime que a Editora Planeta falhou ao não levar esta briga adiante. Isto teria sido bom para a imagem da própria editora, que honraria seu nome. Mas, infelizmente, ela optou por uma solução imediatista, mais cômoda e barata. Hoje não tenho mais nada com esta editora, pois o contrato para edição do meu livro já venceu e não foi renovado. Sigo agora minha luta sozinho, e quando “Roberto Carlos em detalhes” for reeditado, será por outra editora.

Bruno Leal: Nos últimos anos, você deu diversas entrevistas sobre o tema. No entanto, boa parte da imprensa tratou a questão como uma disputa sua com o Roberto Carlos. Mas o foco principal deste debate não deveria estar na legislação brasileira? Qual a sua opinião sobre a nossa legislação?

Paulo César de Araújo: A rigor, se as leis fossem devidamente interpretadas pelos magistrados, ou seja, com ponderação, bom senso, nem precisaria mudar a legislação. Mas, infelizmente, nem sempre isto ocorre. Na nossa Constituição o direito à liberdade de informação e o de privacidade se equivalem em termos de peso, um não prevalece sobre o outro. Eles são tratados como direitos iguais. Ocorre que houve um retrocesso com o novo Código Civil de 2002, que deu um peso maior à proteção da imagem e da privacidade em detrimento do direito de informação. Porém, Código Civil é lei ordinária e não poderia prevalecer sobre uma lei maior, a Carta Magna. Mas na prática os juízes têm evocado este artigo 20 para justificar seus atos censórios. Os advogados de Roberto Carlos, por exemplo, se agarraram a este mesmo artigo para obter a proibição do livro. Por isso, é mais do que necessário o projeto que tramita no Congresso visando mudar o artigo 20 do Código Civil.

Bruno Leal: Paulo, no I Festival de História, realizado na cidade de Diamantina, em outubro de 2011, você disse que o livro circula na internet sem qualquer tipo de controle. E que ele tem sofrido até mesmo edições e acréscimos dos leitores. Isso é bastante inusitado, não? Que tipo de alteração você já viu? Na sua opinião, o livro ainda circular nesse meio lhe prejudica ainda mais ou pode ser positivo?

Paulo César de Araújo: O livro apareceu na internet logo após a sua proibição, em 2007, e entendi isto como um ato de desobediência civil. Mas nas primeiras versões a biografia aparecia com modificações, as pessoas incluíam textos de outros livros e até piadinhas com Roberto, Erasmo e Wanderléa. Registre-se, entretanto, que vários outros livros (e também músicas) correm livres na internet. Isto é um dado da realidade atual. O que lamento é que meu livro não possa continuar também livremente nas livrarias, na forma como foi originalmente publicado. Seja como for, o importante é que “Roberto Carlos em detalhes” continua acessível ao público. Eu escrevi para ser lido. E atualmente recebo mensagens de uma nova leva de leitores que afirmam estar lendo o livro na internet.

Bruno Leal: “Roberto Carlos em Detalhes” é fruto de 15 anos de pesquisa. E não é exatamente uma biografia, como você mesmo disse em outras ocasiões. Trata-se de uma pesquisa que tenta responder o que é o fenômeno Roberto Carlos. Como você respondeu essa pergunta em seu livro? Que chaves de entendimentos foram utilizadas?

Paulo César de Araújo: Eu uso o Roberto como fio condutor para contar a História da moderna música brasileira, surgida a partir dos anos 50. Seguindo os passos de Roberto Carlos analiso a jovem guarda, a bossa nova, o tropicalismo, os festivais da canção, a ditadura militar e outros momentos e movimentos ocorridos ao longo deste período. Trato Roberto como personagem da História do Brasil, não apenas como cantor. Escrevi sobre ele como poderia escrever sobre Lula, Pelé, Luiz Carlos Prestes, personagens marcantes da nossa História. O resgate de trajetórias individuais é útil para iluminar questões ou contextos mais amplos. Como ensina Eric Hobsbawm, o acontecimento, o indivíduo, não são fins em si mesmos, mas constituem o meio de esclarecer questões mais abrangentes, que vão além da História particular e seus personagens. Foi o que me propus ao escrever sobre a trajetória de Roberto Carlos na História brasileira.

Bruno Leal: A proibição do livro abre um precedente perigoso: pessoas públicas são as únicas detentoras, intérpretes e senhoras de suas própria História. Na sua opinião, qual as implicações deste tipo de premissa para o trabalho do historiador?

Paulo César de Araújo: Roberto Carlos resumiu este pensamento ao justificar porque entrou na Justiça contra mim. “A minha história é um patrimônio meu, quem escreveu este livro se apropriou deste meu patrimônio e o usou em seu próprio beneficio”. Esta talvez seja a forma mais radical que se conhece de propriedade privada; não apenas aquela sobre os meios de produção, um imóvel ou um automóvel, mas a propriedade privada de sua História. Se isto prevalecer, ninguém poderá mais contar a História do Brasil. Imagine se o presidente Lula ou os herdeiros de Getúlio Vargas também reivindicassem que a História deles é patrimônio exclusivo e que ninguém poderia escrever sobre o tema sem autorização? Nesse sentido, o caso é realmente grave e necessita da reação da sociedade.

Bruno Leal: Deixemos Roberto Carlos de lado, agora. Seus trabalhos vão bem mais além deste episódio. Você escreveu um livro importantíssimo sobre a música popular brasileira, “Eu não sou cachorro, não: música popular cafona e a ditadura militar”, que rompe com um silêncio: músicos considerados “cafonas” durante a ditadura militar também sofreram com o autoritarismo vigente no país. Como surgiu a ideia desse livro e que fontes você utilizou em sua pesquisa?

Paulo César de Araújo: A ideia deste livro surgiu a partir de uma constatação: a música brega estava excluída dos livros de História da nossa música popular. Quando ingressei na faculdade percebi que as pessoas falavam bastante de rock, bossa nova, tropicalismo, samba de raiz, mas não tinham maiores referências sobre a História da música brega. É como se ela não existisse, fosse invisível. A partir desta constatação resolvi investigar o repertório e o porquê da exclusão. Mas eu não queria ficar restrito à produção musical, avancei também pela História Social, relacionando as canções ao tempo histórico em que foram produzidas. E na pesquisa constatei que os cantores bregas também foram censurados pela ditadura militar. Pesquisei diversas fontes: arquivos da censura, discos, jornais, revistas, além de entrevistas que realizei com os cantores bregas. A discografia foi garimpada em sebos, pois estava quase tudo fora de catálogo. Fui ao Arquivo Nacional do Rio e em Brasília atrás de documentos da Censura, que hoje já podem ser facilmente acessadas, mas na época requeria um trabalho de detetive.

Bruno Leal: Quais foram os artistas do chamado “brega” ou “cafona” que mais sofreram nas mãos do regime militar? E o que exatamente no trabalho desses artistas incomodava aos militares e a direita?

Paulo César de Araújo: Eles incomodaram porque na época não havia apenas repressão política; havia também repressão moral. A referência explícita à sexualidade era identificada como um ato de subversão. O cantor podia dizer “eu te amo, eu te adoro”. Isto não era problema. Mas Odair José cantava: “Eu te amo debaixo do chuveiro”. Aí era proibido. As composições bregas focalizavam temas como prostituição, homossexualismo, adultério, divórcio, racismo, alienação, consumo de drogas, exclusão social. Temas tabus e de impressionante modernidade. Não por acaso Odair José foi um dos mais censurados artistas no período da ditadura. Ele ousava, desafiava a repressão. Por exemplo: 25 anos antes de Marcelo D2, Odair gravou a balada apologética “Viagem”, que convida: “Venha comigo na minha viagem / não se preocupe eu tenho as passagens…”. Outro tema como, por exemplo, o divórcio, que não aparecia no repertório da MPB dos anos 70, foi bastante comentado pelo repertório brega. Ou até mais do que isto. Em 1977, quando muito se falava dos treze anos da chamada “revolução de 64”, Luiz Ayrão fez uma música chamada “Treze Anos”, que diz: “Treze anos eu te aturo e não aguento mais / Treze anos me seguro e agora não dá mais / Se treze é minha sorte, vai, me deixa em paz..”. O título e a mensagem eram óbvios demais e a música foi proibida. Mas, aí, malandramente, ao melhor estilo de um Julinho da Adelaide, Ayrão mudou o título para “O divórcio” e enviou a música para um outro órgão da censura. Os censores de plantão imaginaram tratar-se de mais uma canção de amor e liberaram a gravação.

Bruno Leal: Em “Eu não sou cachorro, não”, são reveladores os depoimentos de Waldik Soriano sobre a tortura, além de outros igualmente reveladores, como Agnaldo Timóteo e Odair José. Porque esse capítulo da História ficou tanto tempo silenciado? E o que os artistas deste gênero acharam do livro? Pelo visto, foram mais elegantes que Roberto Carlos, não?

Paulo César de Araújo: Este capítulo estava fora da História porque no campo da nossa música popular se produziu uma memória histórica autoritária e excludentes. Isto tem a ver com o que o sociólogo Michel Pollak chama de processo de enquadramento da memória. Há um fosso que separa a memória de grupos sociais marginalizados da memória nacional dominante. Os cantores bregas fazem parte da memória afetiva da maioria da população brasileira. Porém, a História tem sido contada por uma elite intelectual que despreza este repertório popular. O resultado foi um amplo descaso com a trajetória de artistas de grande importância para a vida de milhões brasileiros. Além de excluídos dos benefícios do sistema econômico, para grande parte da nossa população não lhes restava nem o registro da sua História, dos seus ídolos e intérpretes. Meu livro foi bem recebido por todos os artistas bregas. Recentemente, na revista Piauí, Odair José até fez um comentário interessante ao dizer que depois de ler “Eu não sou cachorro, não” passou a ter mais afeto e respeito por sua própria obra. Ou seja, Odair havia introjetado o discurso dominante.

Bruno Leal: O cantor Lobão vem nos últimos anos se notabilizando por seus comentários críticos sobre a música popular brasileira. Comentários insistentes e, não raro, superficiais. Existe uma incompreensão da MPB? Na sua opinião, como devemos problematizar a música produzida ontem e hoje no país?

Paulo César de Araújo: Costuma-se dizer que todos brasileiro é técnico de futebol, porque todos nós entendemos deste esporte. No campo da música popular acorre algo parecido. Todos são especialistas em MPB, todos debatem, discutem, opinam, escrevem, mas geralmente de maneira superficial. Um dos grandes problemas é que os pesquisadores não separam seu gosto pessoal da análise. E então acontece algo do tipo: “eu gosto de Chico Buarque, logo Chico é o maior nome da História da MPB”. Ou, “eu gosto mais de Noel Rosa, logo é Noel o maior de todos os tempos”. Geralmente os pesquisadores colocam o seu gosto pessoal ou o da sua classe como parâmetro para definir o passado musical da sociedade. E aí pode ocorrer de alguém se propor a contar a História da música popular brasileira do fim do século 20 e não destacar o funk carioca, o sertanejo ou pagode por considerá-los ruins ou de mau gosto. Mas, afinal, quais os critérios de julgamento na definição da “boa” música popular? Por que Nelson Sargento é considerado bom e Waldick Soriano ruim? Quem determina estes critérios como universalmente válidos? Estas questões precisam ser problematizadas nas análises de nossa música popular.

Bruno Leal: Para encerrar nosso ótimo papo, Paulo, duas rápidas perguntas curiosas. 1) Você está preparando algum novo livro sobre música? 2) Você é um grande flamenguista. Já pensou em biografar algum jogador do Flamengo ou de outro clube do futebol brasileiro? Afinal não existe maior dobradinha no Brasil do que música e futebol…

Paulo César de Araújo: No próximo trabalho vou narrar os bastidores da pesquisa que resultou nos meus dois livros, “Eu não sou cachorro, não” e “Roberto Carlos em detalhes”. Ao longo de quinze anos de pesquisa entrevistei cerca de 200 personagens da música brasileira. Vou falar de meus encontros com Tom Jobim, Waldick Soriano, João Gilberto, Tim Maia, e dos desencontros com Roberto Carlos. Enfim, vou contar a minha História, os caminhos de um biógrafo. Depois pretendo sim fazer um trabalho sobre futebol. Tenho, inclusive, uma pesquisa iniciada no tempo da faculdade. Só não defini ainda se será a biografia de algum craque ou uma análise mais geral. Seja com for, o Flamengo será destaque, pois é um dos construtores da grandeza do nosso futebol.


Paulo César de Araújo é historiador formado pela UFF e jornalista formado pela PUC-Rio, além de mestre em Memória Social pela UNIRIO e professor de História em escolas públicas da capital fluminense.

Ana Paula Tavares

Subeditora do Café História. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais da Fundação Getúlio Vargas (PPHPBC/FGV) , bolsista CNPq. Possui graduação em Comunicação Social – habilitação jornalismo pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ (2006). É formada em teatro pela Casa de Artes de Laranjeiras – CAL (2010). Estuda História Intelectual, Imprensa, Mediação Cultural na trajetória da jornalista Yvonne Jean.

4 Comments

  1. O livro “Roberto Carlos em Detalhes” é uma delícia. Cativa os que gostam do assunto, dos bastidores, da cena artística da época, etc. Depois de tudo que o biografado fez, contra a obra e autor, ouso dizer que Roberto não merece a grande pesquisa que tem nele como fio condutor de uma história. Digo isso porque cresci ouvindo Roberto Carlos. Nunca dei muita bola para as manias do artista estampadas em revistas aqui e acolá mas gosto muito de algumas canções. No entanto o processo e a celeuma contra o historiador me irritaram profundamente. O livro é antes uma homenagem que “invasão de privacidade”. Além disso trata de uma figura pública. Imaginem se a família real, as dos presidentes, dos políticos, dos militares, de perseguidos políticos, etc, se sentindo proprietárias da história resolvessem vetar toda e qualquer citação sobre os seus em pesquisas e livros… Voltando ao livro, o trecho citando o instante de criação e gravação de “Outra Vez”, de Isolda, foi uma achado. Uma canção que inicialmente não era quase nada, como “Outra Vez”, hoje é uma marca daquele que um dia foi “o Rei” – um dia. Paulo César de Araújo é um exemplo de pesquisador, rigoroso, sério e seguro. Muitos no seu lugar, diante de tamanha pressão, que na verdade foram em muitas frentes, relegaria anos de trabalho a um arquivo. Parabéns ao historiador!

  2. Estou gostando muito das matérias e entrevistas que são publicadas aqui no site. Vocês estão de parabéns pelo nível das matérias e das entrevistas.

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