Legitimando a saída autoritária: a imprensa brasileira e o golpe de 1964

1 de abril de 2014
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Na semana em que o golpe civil-militar de 1964 completa 50 anos, historiador João Teófilo aborda a participação e a responsabilidade da imprensa brasileira no golpe.

Por João Teófilo

Passados 50 anos desde o golpe civil-militar de 1964, tem sido constante, seja na imprensa escrita ou falada, discussões sobre o golpe, a ditadura e seus desdobramentos. Igualmente, revisões historiográficas têm aflorado Brasil afora, acompanhadas de disputadas de memória que evocam não somente aqueles que tombaram nos anos do arbítrio, mas, também, aqueles que fizeram parte da articulação golpista e dos aparelhos repressivos da ditadura.

Relembrar o golpe de 1964 nos obriga, inevitavelmente, a questionar sujeitos e grupos que protagonizaram o evento; mais que isso: nos obriga a entender como foi possível consumar um golpe que mergulharia o país em 21 anos de sangrenta ditadura. É preciso, antes de levar adiante esta discussão, estabelecer que o golpe de 1964 não significou, imediatamente, a inauguração de uma ditadura. A ideia propagada era tão somente “restabelecer a ordem” e livrar o Brasil do “perigo comunista”, naquele momento associado a figura do então presidente João Goulart. Aliás, falava-se em devolver o poder aos civis, com a realização das próximas eleições. Quero chamar atenção, pois, sobre a necessidade de, ao falarmos em golpe, não o associarmos mecanicamente com a ditadura que durou 21 anos. É preciso considerar esta ditadura dentro de um processo constitutivo permeado por consensos e dissensos entre os setores da sociedade, e por clivagens dentro das próprias Forças Armadas. Muitos que apoiaram o golpe, por exemplo, tempos depois passaram para o “outro lado”, atuando no campo de resistência à ditadura ou, como no caso da imprensa, adotando uma postura crítica, desprendida de um discurso legitimador e disseminador dos postulados autoritários.

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Primeira página do jornal “Última Hora”, de Samuel Wainer. Imagem: Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP)

Atualmente, é cômodo constituir para si uma memória de resistência e pôr-se do lado daqueles que combateram à ditadura. As reflexões postas como desafio, entretanto, servem para mostrar que longe de ser um movimento essencialmente militar, outros segmentos da sociedade civil, com certo apoio da opinião pública, sobretudo a classe média, apoiaram a saída autoritária. Basta lembrar, por exemplo, das “Marchas da Família Com Deus Pela Liberdade”, do apoio da Igreja Católica e da imprensa, citando aqui somente alguns.

Quero chamar atenção, neste sentido, para não analisarmos os eventos que permearam o golpe a partir de uma leitura vitimizadora e, consequentemente, reducionista, que coloque, de um lado, militares desarvorados depondo um governo democraticamente eleito, e, do outro, uma sociedade civil indefesa ou mesmo alheia aos acontecimentos que se desenrolaram naquele período. Para o sucesso do golpe e do que viria depois, fora preciso, antes de mais nada, encontrar perante a opinião pública uma base legitimadora, essencial ao sucesso do golpe e, posteriormente, manutenção deste poder. E neste aspecto, a grande imprensa brasileira, salvo raríssimas exceções, atuou como mediadora entre os golpistas e a opinião pública, através de um discurso legitimador da ação militar e, concomitantemente, fazendo uma campanha de desestabilização que vitimou o então presidente João Goulart.

Nos tempos de bipolaridade ideológica da Guerra Fria, era comum, não só na memória da sociedade, mas, na mesma medida, nas páginas dos jornais, um forte discurso anticomunista, que evidenciava também, consequentemente, a própria linha editorial desses jornais, que combatiam o “perigo vermelho” e alertavam sobre os riscos de instauração de uma nova Cuba por esses lados do continente americano.

Foi nesse clima de Guerra Fria, marcado fortemente pela ideia de combate ao comunismo, que a imprensa brasileira encaminhou o seu discurso e sua ação. Seu papel neste processo que desencadeou o golpe de Estado que derrubou Goulart é de uma força que não deve ser colocada em segundo plano. Além de atuar como um dos vetores de divulgação do fantasma do comunismo, disseminou a existência de um caos administrativo que afundava o país, assim como a necessidade urgente de restabelecer a ordem por meio de uma intervenção militar. O discurso anticomunista foi a arma utilizada para difundir o medo na sociedade, e as Reformas de Base defendidas por Jango foram identificadas como a passagem do regime capitalista para o comunista. Os jornais, com maior ou menor ênfase, participavam da pregação anticomunista e da defesa de uma intervenção militar.

É curioso, e vale ressaltar, que por trás do combate ao comunismo e da defesa da democracia, que foram a tônica dos discursos proferidos naquele momento, há, na atuação da imprensa, a defesa de uma intervenção militar para evitar o golpe e a instauração de uma ditadura comunista no país, a ser tramada, segundo defendiam, por João Goulart. Vejam só: ironicamente, a imprensa estava legitimando uma ação com base em uma justificativa que condenava justamente aquilo que estava prestes a acontecer: um golpe e uma ditadura. Bem, naquela altura, seria razoável aceitar que, nem a imprensa e nem a sociedade brasileira, estivessem cientes do que viria acontecer nos anos posteriores ao golpe. Há uma série de questões, marcada por clivagens nas próprias Forças Armadas, ilustradas naquilo que muitos estudiosos chamam de “linha dura” e “castelistas”, que explicam o processo de consolidação e declínio do regime, bem como sua fase mais repressiva e menos repressiva.

Para ilustrar a tônica dos discursos proferidos pela imprensa naquele momento, é interessante recorrer a dois editoriais, emblemáticos, publicados no jornal carioca Correio da Manhã: o “Basta!”, no dia 31 de março, e o “Fora!”, no dia 1º de abril. Ambos trazem consigo um discurso radical, que forja uma situação calamitosa que assolava a sociedade brasileira, sendo o grande causador dessa situação o próprio presidente da República, que estabeleceu a “desordem generalizada”, pondo “em perigo” a segurança nacional:

(…) Quase todas as medidas tomadas pelos Sr. João Goulart, nestes últimos tempos, com grande estardalhaço, mas inexeqüíveis, não têm outra finalidade senão de enganar a boa fé do povo, que, aliás, não se enganará. Não é tolerável esta situação calamitosa provocada artificialmente pelo Governo, que estabeleceu a desordem generalizada, desordem esta que cresce em ritmo acelerado e ameaça todas as forças vivas do país (…). Através desses discursos, a opinião pública era preparada para o desenrolar dos próximos acontecimentos, que culminaria no golpe de Estado.

Já o editorial “Fora!”, que considero como sendo o continuísmo do mesmo discurso forjado no editorial “Basta!”, endossava o seu radicalismo exigindo a saída do presidente João Goulart:

A Nação não mais suporta a permanência do Sr. João Goulart à frente do Governo. Chegou ao limite final a capacidade de tolerá-lo por mais tempo. Não resta outra saída ao Sr. João Goulart senão a de entregar o Governo ao seu legítimo sucessor. Só há uma coisa a dizer ao Sr. João Goulart: saia”.

Esses dois editorais, entretanto, são apenas um exemplo, dentre muitos, sobre o tom dos discursos que a imprensa disseminou para a opinião pública na conjuntura do golpe. Outros jornais, a exemplo do O Globo e Folha de São Paulo, também defenderam a deposição de Goulart. E esse apoio não ficou restrito apenas aos grandes jornais do Sudeste. O maior jornal impresso do Ceará, O Povo, também fora outro entusiasta do golpe. Em essência, a imprensa brasileira apoiou o golpe de 1964. Dos que se puseram contra, vale lembrar do carioca Última Hora, pertencente a Samuel Wainer, que teve sua sede incendiada.

Muitos jornais, como se sabe, mantiveram-se ao lado da ditadura, mesmo na época em que a censura e a perseguição e morte de jornalistas indicou que o regime vivia sua fase mais perversa. Aliás, foi durante o período ditatorial que alguns grupos de comunicação viram seus negócios crescer. É certo, também, que no período da abertura política e da campanha “Diretas Já!”, muitos jornais vestiram a carapuça da democracia e apostaram no cavalo que estava ganhando, uma vez que o regime apresentava sinais de declínio e as pressões sociais pelo seu fim ganhavam força.

Há, e é preciso trazer à tona, uma memória forjada de jornais que tão somente sofreram com a censura e combateram o regime. Uma memória, pois, equivocada. É preciso evidenciar a existência de uma forte perspectiva colaboracionista, do forte apoio editorial que, em maior ou menor profundidade, marcaram a atuação da imprensa brasileira, tanto no momento do golpe como nos anos seguintes de arbítrio.

No clima que marca a passagem destas cinco décadas, acompanhado de certa pressão social, presenciada nas manifestações de rua que tomaram conta do país no ano passado, alguns jornais, tardiamente, fizeram o seu mea culpa, e assumiram suas ligações com a ditadura. O O Globo o fez e, mais recentemente, a Folha de São Paulo. A despeito de suas justificativas, tais ligações não constituem, certamente, nenhuma novidade.

É cômodo, 50 anos depois, situar-se numa zona de conforto e responsabilizar tão somente os militares pelo arbítrio de 21 anos. Jornais que apoiaram a ditadura o fizeram e ainda o fazem com certa frequência. Mas não nos enganemos. Para que o golpe fosse consumado, era preciso apoio. E nisso, a imprensa brasileira, de uma maneira geral, teve um papel importante: não só no momento do golpe, mas também na consolidação da ditadura civil-militar. É um equívoco, pois, quando a memória da sociedade e mesmo a história, seja aquela feita por historiadores, jornalistas ou sociólogos, responsabiliza somente os militares. Está mais do que evidente que esta culpa precisa ser divida, e 50 anos parece ser uma idade madura o suficiente para pôr o dedo na ferida.


João Teófilo – Historiador, mestre em História Social pela PUC-SP e doutorando em História pela UFMG. Foi pesquisador do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC/FGV). Atualmente, pesquisa sobre políticas de memória, esquecimento e reparação no Brasil após a ditadura militar. Email: [email protected]

João Teófilo

Mestre em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP (2015) e, atualmente, cursa doutorado em História na Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Atuou como pesquisador bolsista (2015/16) no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil – CPDOC, da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo – FGV-SP. Pesquisa ditadura militar no Brasil, políticas de memória, esquecimento e reparação no Brasil pós-ditadura, história oral e imprensa.

4 Comments

  1. “É cômodo, 50 anos depois, situar-se numa zona de conforto e responsabilizar tão somente os militares pelo arbítrio de 21 anos.”
    Tenho agora Uma outra visão de como começo u o golpe e depois a ditadura.
    Muito bom .

  2. Gostei muito desse texto! Fez eu relembrar minha monografia, na qual justamente analisei o Última Hora, como ele não apoiou o golpe, mas infelizmente foi obrigado a ceder após o AI-5, que resultou na perca de sua qualidade e na venda dele em 1971

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