Debate sobre Teoria(s) da História – Parte 3

3 de março de 2016
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Entrevista com Andre Lemos Freixo (UFOP) – Parte 3
Debate sobre Teoria(s) da História – Parte 3 1
André de Lemos Freixo é professor da UFOP. Foto: NEHM-Divulgação

Bruno Leal: Ainda dentro dente universo, vivemos, atualmente, um momento particular no que se refere a “popularização” da história no Brasil. Revistas, redes sociais, blogs e livros, entre outras mídias, atendem uma demanda social cada vez maior pela história. Como você interpreta esse momento? Como a historiografia brasileira pode se beneficiar disso tudo?

Andre de Lemos Freixo: Eu penso que sempre houve essa diversidade. Nós, os historiadores formados (acadêmicos), talvez tenhamos nos acostumado demais a pensar e avaliar positivamente apenas aquelas historiografias produzidas pelos “grandes nomes” ou “grandes instituições”. Por essa e por outras que julgo uma história da historiografia teoricamente orientada tão necessário. Para que possamos conhecer muitas outras possibilidades históricas e historiográficas. Mark Salber Phillips, historiador da Universidade de Carleton (Canadá), assevera que muito do que tem sido escrito sobre historiografia demonstra um tipo muito peculiar “present-mindedness” que estreita nossa compreensão das tradições anteriores e enaltece o profissionalismo de nossa própria época com o falso senso de sua própria distinção e realizações. Os próprios historiadores muito frequentemente têm falhado a sujeitar seus pressupostos sobre história à modéstia da reflexão teórica e historiográfica. Assim, penso que de formas muito distintas sempre houve variedades de formatos históricos convivendo juntos. Divulgadores, histórias populares, cinema, teatro, rádio, educação… Há incontáveis possibilidades. Já há alguns anos temos assistido aos avanços da técnica e dos meios de divulgação de informação histórica. A história digital e a história pública têm feito avanços nesse sentido. Mas isso não significa que apenas agora estamos diante da popularização da história. Hoje temos, talvez, uma massificação maior. O horizonte histórico das diferenças nos lança à busca de novas vozes. Cada pessoa hoje se julga “digna” de ser histórica e historicizável. Isso gera maior visibilidade à pluralidade de atores e agentes, para o bem e para o mal, claro. A democratização do acesso à internet e das redes sociais, blogs, entre outras coisas também ajuda. Mas há estudos que indicam que a popularização da história já existe desde, pelo menos, o século XIX. Sobre isso, há o livro Popularizing the national pasts: 1800 to the presente, organizado por Stephen Berger, Chris Lorenz e Billie Melman.

Bruno Leal: No final dos anos 1970, o historiador Lawrence Stone falou em um “retorno da historiografia” para se referir a uma postura intelectual que estaria se sobrepondo ao modelo estruturalista da história. Esse “retorno”, baseado em uma lógica interdisciplinar, viria recuperar um laço com a literatura e com a arte há muito tempo perdido ou minimizado. O crescente interesse dos historiadores pelo grande público, como falamos anteriormente, seria um indicador de que Stone estaria certo? Ou estamos falando aqui de coisas essencialmente diferentes?

Andre de Lemos Freixo: Me parece que são coisas distintas. No caso do artigo de Lawrence Stone, trata-se de uma interpretação sobre o surgimento da “nova história” (Nouvelle Histoire) nas academias francesa e anglo-americana. De certo modo, os historiadores que ele cita no chamado “retorno da narrativa” podem ser relacionados ao projeto historiográfico encabeçado por Pierre Nora e Jacques LeGoff na década de 1970: novos problemas (ou questões), novas abordagens (ou métodos), novos objetos (a partir de novas fontes). Como uma nova onda de estudos e estudiosos que colocaria em xeque a historiografia de pretensões eminentemente científicas (como a história quantitativa, a serial e a socioeconômica) das duas décadas anteriores. Havia, assim, uma preocupação enorme de Stone em diferenciar o que ele identificava como “novas” narrativas históricas das histórias narrativas “tradicionais” – aquelas que boa parte da historiografia social das décadas de 1950 e 1960 demonizou sob a pecha de “positivistas” ou de história événementielle. Essa precisou se tornar a “história factualista”, narrativa dos fatos políticos e dos fastos dos “grandes homens”, também muito associada à história política (leia-se nacional e oficial) oitocentista, pejorativamente, como forma de evidenciar o velho, a “velha historiografia”, e abrir espaço para o “novo” modelo historiográfico chamado de estruturalista. Assim, o “retorno” de que fala Stone precisava se cercar de cuidados para falar de narrativa. Se ela “voltava”, precisava ficar claro que isso não implicava em um retrocesso em termos epistemológicos (ainda que seu tom fosse de alguma desconfiança frente as novidades), de modo que se a narrativa retornasse, era preciso frisar que ela deveria estar submetida a uma historiografia sofisticada, absolutamente consciente de suas condições de possibilidade, ainda que profissionalizada e especializada e de pretensões científicas.

Se tirarmos isso, creio que se pode concordar com Roger Chartier de que Lawrence Stone apenas “choveu no molhado”, por assim dizer. Quer dizer, a narrativa nunca desapareceu do trabalho dos historiadores, mesmo quando a influência do estruturalismo era enorme. Basta que pensemos, à luz de Paul Ricouer (no primeiro volume de Tempo e Narrativa), sobre a excelente forma narrativa de Fernand Braudel em La Mediterranée et le monde méditerranéen à l’époque de Philippe II.

O movimento da Nova História foi enormemente influente no Brasil. Nas décadas de 1980 e 1990, e no início do século XXI, acho que é seguro dizer, as modalidades possibilitadas pelas historiografias francesa e anglo-americana, com grande relevância também da micro-história italiana, definiram a face de nossa historiografia especializada no interior das universidades (mas não apenas) e dos programas de pós-graduação em História.

As pretensões dos historiadores se tornaram mais largas, inclusive a de atingir um público cada vez maior. Mas isso se deve a existência desse público e do amplo interesse por história na esfera pública. A procura por cursos de História em universidades públicas e particulares cresceu vertiginosamente entre fins da década de 1990 e inícios do século XXI aqui no Brasil. Isso nos oferece um quadro bem claro que o interesse por história existe, embora hoje, talvez, esse interesse não acompanhe necessariamente o que os historiadores profissionais produzem. Mas isso é um outro problema.

Mas penso que isso tudo tem pouco a ver com a forma “narrativa”. Como eu já falei, tem a ver com a diversificação que caracterizou nossa historiografia nas décadas de 1980 e 1990 e ampliação da “Área” que ocorreu nos últimos quinze anos, aproximadamente. Outros atores e agentes entravam em cena pela via da historiografia o que despertou um novo interesse pela historiografia. Além disso, o público leitor estava sedento por história e novos sentidos para o Brasil que buscava novas possibilidades diante da nossa Abertura (1979-1984): empoderamento para novos grupos e suas identidades, surgimento de novas culturas urbanas; gênero, em geral, com grande ênfase sobre as mulheres, e as minorias LGBT; afrodescendentes; indígenas, entre tantos outros. A própria possibilidade da empatia dos jovens estudantes de história (e do grande público) com essas novas personagens é um fator a ser levado em conta e passou a ser um elemento presente mesmo nos trabalhos que tematizavam personagens mais “tradicionais” (como D. Pedro II, por exemplo) por ângulos menos solenes, a partir de aspectos mais humanos de suas vidas privadas. Hoje percebemos que um grande filão editorial é a história. E as biografias seguem bem de perto. Isso tem a ver com uma concepção de agência e de transformação da história por pessoas, indivíduos, ou minorias quase sempre representadas sob as sombras dos “grandes” e “poderosos”. Uma ideia poderosa hoje em dia, especialmente no Brasil dos últimos treze anos.

Agora, quando só o que interessa é vender, a coisa muda de figura. E temos histórias escritas por um rol bastante ampliado de pessoas, que podem ser jornalistas, arquitetos, economistas, políticos, politólogos, historiadores etc. Isso inclui desde best sellers de qualidade inquestionável, aos de qualidade muito questionável, passado por livros medianos, chegando ao fundo do poço (se é que esse poço tem fundo) dos absurdos guias “politicamente incorretos” e congêneres por aí. Vamos dizer o que, que não é história? Por que? Porque história é só o que os historiadores profissionais escrevem? Por um lado, claro, tendo a pensar desta forma. Mas não tenho mais tanta certeza quanto a certas convicções da “torre de marfim”. É certo que história vende e vende muito: desde livros caríssimos, às revistas de bancas de jornal (algumas delas excelentes!). No frigir dos ovos, há diferenças qualitativas em jogo, até mesmo questões de virtudes epistêmicas, de honestidade intelectual, éticas em jogo, inclusive, mas toda história escrita pode ser apropriada para fins diversos. O campo pode intervir até certo ponto nessa avaliação, mas não creio que haja muito que se possa fazer. A procura imensa por história é, em parte, uma busca por esse tipo de legitimidade científica, ou apenas deste rótulo, para fins diversos. Mas não creio que haja controle (e método e ciência pressupõem isso) nesse sentido. Acredito que o lugar dos historiadores no mundo da diversidade absoluta precisa ser repensado, e com ele os critérios de rigor, cientificidade (que não é a mesma coisa que ciência) etc., a partir do interior das humanidades, como forma de nos reinserirmos no mundo com o qual dialogamos e do qual comparticipamos.

Por outro lado, eu acho que o mercado editorial não deveria ser nossa única régua para medir o grau de interesse por textos de história, ou por passado. Na realidade, é até preocupante acompanhar os lançamentos de alguns historiadores, excelentes pesquisadores, quando se entregam aos delírios do mercado, como se houvesse uma meta final: ser lido por muitas pessoas independentemente do que for. Não há nada de errado em querer ser lido, mas julgo que isso deve ter limites. Também não acho que todos devam ser historiadores profissionais para lerem textos herméticos. Mas um meio termo precisa ser encontrado. Muitas vezes o interesse mercadológico, ou de “engorda” de curriculum lattes, não está nem um pouco preocupado com reflexões de natureza mais rigorosa, que complexifiquem, aprofundem e problematizem questões importantes como de onde vem nosso interesse por história? Ou ainda o que define um texto de natureza histórica? Seriam apenas questões de ordem epistemológica? Ou há mais em jogo? Questões cujas respostas quase sempre estão pressupostas, ou de respostas aparentemente autoevidentes, sobre a nossa relação com o tempo e a temporalidade (nem todo o tempo é tempo histórico), sobre o que define (quando e como) as fronteiras entre passado e presente, sobre historicidade(s), entre muitas outras questões.

Então eu lembro daquele verso/estrofe do poeta Cazuza (“Eu vejo o futuro repetir o passado, eu vejo um museu de grandes novidades…”) quando surgem textos (e são narrativas, sintéticas) de história absolutamente “quadrados” do ponto de vista formal, teoricamente poderiam ter sido lançadas há décadas atrás! Será que nada do que foi feito no mundo após Metahistory (1973)? Esse texto, que já é datado e muito criticado fora do Brasil foi lido? Não houve nenhuma consequência teórica efetiva para a escrita da história após as reflexões da chamada virada linguística? Da Hermenêutica? Quer dizer, se se visa atingir a um público específico, este precisa crer (e continuar a crer) que a História (sim, com agá maiúsculo) é uma única coisa imutável? E a historiografia dedica-se a escrevê-la tal como ela “é”? Se sim, não situar debates teóricos relevantes ou ignorá-los sobejamente em nossa prática historiográfica, sem repensar o que há de mais fundamental em história (historicidade e temporalidade), ou o lugar da historiografia frente aos dilemas da contemporaneidade, é uma atitude mais do que conservadora, você não acha?

Mas, novamente, penso ser isto tudo parte de um problema mais amplo. O movimento, então, precisa ser mais (e muito mais) teórico, filosófico e crítico; um movimento que, ao que tudo indica, é cada vez mais necessário diante dos pragmatismos, imediatismos, moralismos, doutrinações e seus muitos usos e abusos da história na era do “real time”, do consumismo desenfreado (também de história e de passado) e da nova “realidade virtual” que são as redes sociais: qual o lugar das humanidades no mundo de hoje?

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Andre de Lemos Freixo é Doutor em História (PPGHIS/UFRJ, 2012), Mestre (PPGHIS/UFRJ, 2008) e Bacharel com Licenciatura (UFRJ, 2006) em História. É Professor Adjunto no Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Tem como áreas de interesse: História da Historiografia Brasileira, História do Brasil Republicano, Teoria e Filosofia da História. Também é coordenador do Núcleo de Estudos em História da Historiografia e Modernidade (NEHM/UFOP).

Ana Paula Tavares

Subeditora do Café História. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais da Fundação Getúlio Vargas (PPHPBC/FGV) , bolsista CNPq. Possui graduação em Comunicação Social – habilitação jornalismo pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ (2006). É formada em teatro pela Casa de Artes de Laranjeiras – CAL (2010). Estuda História Intelectual, Imprensa, Mediação Cultural na trajetória da jornalista Yvonne Jean.

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