Debate sobre Teoria(s) da História – Parte 2

3 de março de 2016
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Entrevista com Andre Lemos Freixo (UFOP) – Parte 2
Debate sobre Teoria(s) da História - Parte 2 1
André de Lemos Freixo é professor da UFOP. Foto: NEHM-Divulgação

Bruno Leal: É verdade. Esse tipo de cuidado é muito importante, sobretudo quando partimos de uma perspectiva historiográfica. Mudando um pouco de assunto, queria agora falar sobre um outro trabalho seu. José Honório Rodrigues foi tema de sua tese de doutorado. Quais foram as principais contribuições deste historiador para a historiografia brasileira no século XX?

Andre de Lemos Freixo: Analisei textos de Rodrigues. Em especial, os textos sobre teoria da história e historiadores brasileiros. Honório Rodrigues foi um autor nacionalista, muito prolífico, com quase 30 livros publicados (alguns traduzidos para o inglês e publicados fora do Brasil) e centenas de artigos publicados entre 1936 e 1986. Faleceu em 1987. Ele pertenceu a uma geração de autores bastante ativos e engajados na renovação e profissionalização dos estudos históricos no Brasil. Sua trajetória intelectual se confunde com as próprias transformações da historiografia brasileira no século XX. Apesar de ser reconhecido como um dos mais importantes historiadores brasileiros por colegas e prestigiosas instituições nos Estados Unidos da América, Inglaterra, México e França, em sua própria terra, na qual escolheu viver, Rodrigues não gozou do mesmo prestígio de outros autores. No entanto, pode e deve figurar ao lado de Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Caio Prado Júnior, Nelson Werneck Sodré, Guerreiro Ramos, Vitor Nunes Leal, Raymundo Faoro, Florestan Fernandes, entre outros, poucos anos mais novos ou velhos que ele. Costuma-se denominar como a geração dos “redescobridores” ou dos “intérpretes” do Brasil, como bem analisou Paulo Alves Júnior.

Mas não digo isso como exercício de monumentalização. Apesar de Rodrigues não ter se tornado um “monumento”, como alguns dos demais, ele se tornou um autor muito significativo para o campo da teoria da história e da história da historiografia aqui no país – especialmente em dois momentos: na década de 1970, quando jovens historiadores assumiam cargos importantes nas universidades paulistas e paulistanas em meio à Ditadura Militar, como foi o caso de José Roberto do Amaral Lapa, Carlos Guilherme Mota e da Raquel Glezer – que defendeu a primeira tese de Doutorado no Brasil em História da Historiografia no Brasil, exatamente com uma tese sobre José Honório Rodrigues – com ele na banca avaliadora! Em um segundo momento, no início do século XXI, com a organização do campo de pesquisa em teoria da história e história da historiografia, ao redor de nomes como Manoel Salgado Guimarães, Temístocles César, Estevão Rezende Martins, Valdei Lopes de Araújo, Sérgio da Mata, entre outros, sua relevância tem sido redimensionada. Esse campo o reconhece como uma espécie de figura pioneira. Mas penso que haja muito mais aí.

Em 1949, Rodrigues publicou Teoria da História do Brasil, no qual apresentou suas apropriações de autores importantes para a historiografia como um todo, alguns mais outros menos conhecidos no Brasil de então: Benedetto Croce, Robin George Collingwood, Friedrich Meinecke, Ernst Troeltsch, Ernst Bernheim, e se dedicou longamente às pesquisas sobre historiadores brasileiros, publicando muito sobre esse assunto. Ele desenvolveu um projeto ambicioso de tornar a história uma ciência no Brasil.

Apesar de todos os esforços em prol da objetividade científica, que foram muito significativos no século XIX, não existia um campo disciplinar, institucionalizado e autônomo no Brasil. Para Rodrigues, como para quase todos os intelectuais das primeiras cinco décadas do século XX, a ciência era uma das balizas que definiam a modernidade. O Brasil, até então, era visto como país “atrasado” em muitos aspectos. Parte desse atraso foi creditado aos problemas sociais (analfabetismo, desigualdade social, miscigenação, desnutrição, altíssima taxa de mortalidade infantil e de baixa expectativa de vida). Nossa modernização precisava, pensava-se à época, superar esses problemas para criar condições de superarmos o tal atraso e modernizarmos o país. As ciências passaram a ser vistas como caminho para isso. Uma verdadeira guerra ao positivismo foi lançada. Grosso modo, no positivismo, as abstrações, as ideias e as “teorias” deveriam ser formuladas antes de encontrar suas concretizações. Foi a grande onda de importações de teorias e projetos de toda sorte para modernizar o Brasil. E a ideia de ciência que passou a figurar no início do XX, na esteira de Euclides da Cunha, Alberto Torres, Oliveira Vianna, entre outros, inverteu essa equação que aqui chamo de “positivista”. Para eles, a realidade precede as ideias. Como a voz da razão no estudo do real, a ciência brasileira deveria estudar e compreender a natureza da nossa realidade e seus problemas em todas as suas dimensões. Daí a necessidade da sociologia, geografia, demografia, economia, antropologia, literatura, educação, arquitetura etc. Essas ciências “novas”, uma vez que terminassem seus estudos, poderiam contribuir para a solução dos problemas (de interesse público) que mantinham o Brasil “atrasado”. Foi esta a concepção de ciência que Rodrigues buscou para a História do Brasil. Um campo científico que investigaria e descortinaria os rumos do “real” processo histórico nacional, suas mazelas e problemas históricos, seus desafios atuais, assim como os projetos e avanços esperados para a nação brasileira.

Esta ciência seria composta por uma formação específica para os “novos” historiadores: teoria, métodos e historiografia. O plano no qual Teoria foi organizado o dividiu originalmente em dezoito capítulos, que podem ser separados em dois blocos: do primeiro ao oitavo capítulo, Rodrigues estabeleceu diversas reflexões de caráter teórico sobre a história: o desenvolvimento da ideia de história e seu estatuto científico (tal como identificado por ele nos EUA e produção historiográfica alemã recente), o problema das causas em história, a periodização, os diversos tipos de histórias, além de um capítulo sobre a “certeza histórica” (posteriormente excluído); e do nono ao décimo sétimo, expôs todo o seu entendimento acerca da metodologia da história, fontes e documentos, disciplinas auxiliares e as críticas exigidas ao trabalho do historiador.

O décimo oitavo capítulo, “A compreensão e síntese históricas”, é o encerramento da obra. Rodrigues reafirma a ideia central de fazer da história no Brasil uma ciência hermenêutica. Ali, resumiu também o que ele julgava necessário se desenvolver para superar o “atraso historiográfico” no país: seguir o que de mais atual e inovador havia no país: Capistrano de Abreu, Paulo Prado, Oliveira Vianna, Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre. Isto é, aqueles que tentaram, cada um ao seu modo, tematizar o povo brasileiro, colocando-o como agente de transformação histórica. Pautou-se sobre três traços fundamentais que, para ele, definiriam o historiador “de fato”, isto é, o especialista, o intérprete “responsável” da história: a reflexão teórica (formulação de conceitos/instrumentos heurísticos); novas metodologias desenvolvidas como resultado de pesquisas sobre novas fontes documentais; e a compreensão histórica (a interpretação sintética sob a forma narrativa).

A tomada de consciência acerca da “história da história” do Brasil, seus estágios precedentes e seu atual momento (e problemas), tornava-se, pois, parte central de suas argumentações e projetos. Rodrigues visou fornecer em Teoria um impulso decisivo para mobilizar uma ação renovadora na história no Brasil. Assim, para além da síntese entre reflexão teórica, lições metodológicas e compreensão (interpretação), cabe verificar também o fio condutor de sua narrativa, a partir do qual construiu o sentido para seus leitores. Pode-se identificar três movimentos no interior de Teoria da História do Brasil: 1) definição do que seria o novo e o velho em termos históricos no Brasil; 2) definição dos métodos com que trabalham os historiadores, como se manejam as fontes e as críticas possíveis de se fazer às mesmas em novas pesquisas; 3) justificativa da necessidade dessa renovação em uma apresentação narrativa da urgência da mesma para a devida compreensão do Brasil e seus caminhos. Configurava-se ali, simultaneamente, uma narrativa na qual Rodrigues temporalizava a própria ação renovadora que ele propunha. Isso explica o título da obra, Teoria da História “do Brasil”. Não se trata de uma teoria “brasileira” da história. Rodrigues defendia que as reflexões de caráter teórico estavam ausentes da bibliografia histórica brasileira contemporânea. Salvas as exceções por ele destacadas, casos individuais importantes, mas não modelares ou sistemáticos, nossa bibliografia histórica ainda se realizava a partir de (pre)conceitos que conduziam nossa historiografia aos erros de doutrinas “mortas” ou do esforço de corajosos e solitários pesquisadores. Para superar tais deficiências criticamente as reflexões teóricas deveriam ser incorporadas ao arsenal dos historiadores brasileiros redefinindo horizontes (nacionais), sistematizando revisões interpretativas, esforço que deveria ser encetado por um coletivo, ou um campo, de pesquisadores nacionalistas.

É importante, assim, entendermos o que Rodrigues entendia por conceito. Esse entendimento estava, como já mencionado antes, atrelado à sua apropriação de representantes (ou intelectuais largamente influenciados) do (ou pelo) idealismo filosófico da chamada escola neokantiana do sudoeste alemão, como Heinrich Rickert, Wilhelm Dilthey e Max Weber. Segundo Sérgio da Mata, Rickert diferenciava a ciência de outras formas de conhecimento, em termos da percepção da realidade, a partir da ideia de que a ciência elabora e opera conceitos para definir o real. Para José Honório Rodrigues, de modo muito semelhante, o conceito torna-se instrumento fundamental mas, em si mesmo, configura uma realidade dinâmica (pois histórica). Por essa razão, novas pesquisas e descobertas empíricas necessariamente levariam a reformulações conceituais e revisões interpretativas. Assim, diferentemente dos conceitos generalizantes das ciências da natureza, os conceitos históricos referem-se a realidades investidas de valor histórico. O historiador, então, não buscaria um princípio geral de funcionamento, mas a reconstituição das individualidades. Apesar disso, um conceito não precisa ser uma formulação exclusivamente individual, também podendo ser considerado uma síntese obtida à custa de esforço sistemático. O que nos deixa diante da questão do juízo de valor (seleção). Assim, quando Rodrigues falava em teoria ele aliava essa configuração conceitual às novas pesquisas e horizontes históricos, à revisão interpretativa, e ao engajamento às questões políticas e sociais contemporâneas.

Outro ponto que julgo valioso repousa no fato que Rodrigues apresentava aos brasileiros uma “história cruenta”. A sua compreensão do Brasil procurou afastar-se de ufanismos patrióticos, porém sem se desfazer de um projeto coletivo de nação. Seu nacionalismo, almejava ver o Brasil como uma das grandes potências modernas do mundo. Mas ao incorporar a violência ao processo histórico brasileiro, violência tradicionalmente apagada de nossos livros de história e de nossa identidade nacional, ao saber reconhecê-la como parte de uma formação social específica, ele acreditava fornecer um caminho para nos libertarmos de nossos próprios preconceitos. Saber das mazelas sentidas e sofridas por um povo “capado e recapado, sangrado e ressangrado”, em palavras apropriadas por ele a partir de Capistrano de Abreu, seria o primeiro passo para se fundar um Brasil novo. Um povo solidário e sobrevivente, humano, trabalhador, e nada “coitadinho”, tampouco “alegre por natureza”. Para ele, até então, nossa história fora escrita e realizada por segmentos de lideranças absolutamente despreocupadas com os rumos do povo, suas aspirações legítimas e seus interesses. Com o senso de público totalmente moldado pelo contexto familiar, os jogos da conciliação “pelo alto” ditaram os rumos e interpretações do país. Essa elite minoritária, conservadora, de valores patriarcais, escreveu e fez a história para si mesma, na qual a identidade nacional auxiliava na fabricação de um tipo nacional avesso à ideia de ruptura, de participação popular, e mesmo de povo (quase sempre visto como “a plebe”, “a ralé”, “a canalha”, “os ignorantes”).

Para José Honório, o liberalismo brasileiro seria fruto deste fenômeno conciliatório e excludente: elite branca e “educada”, conservadora ou reacionária, neurótica, supersuspeitosa, superagressiva e inflamada. A marca de lideranças como as da União Democrática Nacional (UDN), encabeçada por Carlos Lacerda: quando derrotados democraticamente, não aceitavam, apelando para todas as formas de complôs, conspirações, intrigas sobre fraudes eleitorais, para fazer valer sua indignação frente ao sucesso de outros grupos. Liberticidas e antidemocráticos, sua identidade se sustentava na violência e no ódio ao “outro”: fosse o nordestino, o miserável, o desempregado, desabrigado, mendigo, o menino de rua ou trabalhador. Nosso liberalismo se mobilizou por uma atitude “paranoica” de autopreservação e defesa intolerante de seus próprios interesses, muitas vezes alimentando a violência da repressão militar ou policial às manifestações legítimas de trabalhadores e populares (“vândalos” ou “baderneiros”), reclamando maior participação na vida política nacional; violência tragicamente naturalizada por estes mesmos atores.

A separação entre elite e povo figurava na base do que Rodrigues combatia. As ideias que a mantinham como regra também. E o fazia em defesa de um liberalismo totalmente diferente daquele que se estabelecera no país, pois profundamente inspirado no liberalismo estadunidense ou, ao menos, o liberalismo segundo Tavares Bastos ou Rui Barbosa: progressista, libertador, animado pelo senso de interesse coletivo, de bem comum e de um espírito de bem público. No entanto, para José Honório, a conciliação nunca se fez com o povo, mas por cima do mesmo.

Uma historiografia “nova” era vista, portanto, como parte necessária do “combate” contra os mandos e desmandos das “elites fratricidas”. Sua função seria educadora e libertária, avaliando os juízos acerca de nosso passado, limpando-os dos excessos e atualizando-os segundo demandas e interesses nacionais. Significava, por um lado, a construção de um campo científico para a história do Brasil. Campo confiável, profissionalizado e conduzido por especialistas. Ou seja, com novas pesquisas, novas metodologias, e, acima de tudo, as reflexões teóricas, esta ciência moderna poderia ter meios concretos de se proteger contra os usos e abusos do passado por motivos levianos no presente. Epistemologicamente garantidas as suas verdades, ou dentro dos seus rigorosos limites de possibilidades, suas convicções nacionalistas (de realização dos interesses e aspirações nacionais legítimas) tornariam possível o redimensionamento do passado e a ação no presente à luz dos fatos e do processo histórico brasileiro. Por outro lado, essa historiografia científica não se arvoraria em objetivismo ou imparcialidade estéreis, mas em um engajamento intelectual na luta contra o conservadorismo e o dissídio entre poder e sociedade, entre brasileiros, caminhando em direção ao nacional, a democracia e cidadania plenas.

Para José Honório Rodrigues, compreender historicamente as ideias conservadoras e reacionárias significava assenhorear-se das ideias que ensinaram aos brasileiros a temerem a mudança ou as reformas estruturais; e a acreditarem que quanto mais tudo muda, mais as coisas permanecem como estão. Para ele, somente assim, o povo brasileiro poderia crer na sua capacidade para ação e transformação: do Brasil como o país da eterna promessa de futuro à ação transformadora de construção do futuro do país. Havia “militância”, ou “combate”, em sua atividade historiográfica, na qual o cientista e o cidadão convergiam. Dialeticamente, pensava ele, realidade e história deveriam se encontrar e se modificar reciprocamente. Esta realidade social se altera e alteram-se igualmente os sentidos e interpretações sobre o passado. Em que pesem as evidentes limitações de suas alternativas, projetos e mesmo do seu nacionalismo desenvolvimentista (típico da intelectualidade atuante na década de 1950), podemos dizer que suas questões e a natureza ética de suas reflexões sobre história e historiografia, sobre vida e história, parecem gozar de renovado interesse para a atualidade.

Bruno Leal: Na década de 1940, José Honório Rodrigues frequentou a Universidade de Columbia. Depois, já de volta ao Brasil, trabalhou no do Instituto Nacional do Livro, na Biblioteca Nacional, entre vários outros espaços intelectuais brasileiros de enorme importância. Que peso tiveram esses experiências fora do ambiente acadêmico em sua produção historiográfica?

Andre de Lemos Freixo: Sua trajetória nestes espaços institucionais foi bastante importante, em parte no que toca à sua historiografia, pois boa parte de seus problemas e questões foram desenvolvidos no interior das mesmas e com pesquisas possibilitadas, materialmente, por elas. Em Columbia, mas igualmente por outras instituições estadunidenses por onde ele passou na sua viagem de um ano aos EUA (1943-1944), Rodrigues conheceu uma estrutura institucional, acadêmica e universitária que ele jamais havia visto. No Brasil não existia nada semelhante nas décadas de 1930 e 1940. Nossas universidades estavam ainda em seus primeiros anos de existência. E ele voltou dos EUA decidido a lutar por aquele tipo de estrutura para o Brasil, comprando brigas e acendendo polêmicas com a incipiente esfera universitária brasileira, logo taxada por ele de ultraconservadora. Seu projeto científico começou a ser gestado nas instituições nas quais ele trabalhou. Como Diretor da Seção de Obras Raras e Publicações da Biblioteca Nacional (BN), Rodrigues trabalhou muito, editou a Série Documentos Brasileiros e os Anais da BN, e viajou pela Europa como representante desta instituição, em 1950. Ele chegou a idealizar um Instituto de Pesquisa Histórica que, originalmente, deveria ter sido criado no interior da Biblioteca Nacional (no Rio de Janeiro). Posteriormente, chegou a escrever um livro, “A Pesquisa Histórica no Brasil: sua evolução e problemas atuais” (1952), no qual justificava a necessidade de formar uma nova geração de historiadores em um lugar institucional específico, espécie de escola de altos estudos, para formação de quadros historiográficos no país – com o foco em pesquisas, arquivos e arquivística, biblioteconomia etc.. A última seção deste livro é um programa detalhado de como funcionaria esse tal Instituto, que deveria ser público e autônomo, como em instituições congêneres dos EUA, França, Inglaterra, Itália, Alemanha, Holanda etc.. Era sua tentativa de consolidar e institucionalizar o seu projeto de uma ciência da História do Brasil, mas que nunca saiu do papel. Os caminhos da história científica no Brasil foram outros.

Bruno Leal: Falando nos caminhos da história científica no Brasil, nos últimos três anos, pelo menos, a questão da regulamentação da profissão de historiador ganhou novo fôlego no Brasil. O projeto de lei, de autoria do Senador Paulo Paim (PT-RS), está agora muito próximo de ser aprovado no Congresso Nacional. No início, houve muita desconfiança. Parte da imprensa, viu o projeto como uma tentativa de “reserva de mercado”. Entre os próprios historiadores e instituições de pesquisa também houve quem o visse com reservas. Qual a sua opinião sobre a regulamentação de nossa profissão? Por que esse tema ganhou novo fôlego agora?

Andre de Lemos Freixo: É curioso. Como eu disse antes, José Honório Rodrigues lutou pela especialização e profissionalização da historiografia no Brasil entre as décadas de 1940 e 1970. Evidentemente, seu projeto era imenso, quase megalomaníaco, e visava erigir um campo científico da história chamado historiografia brasileira: isto é, uma ciência da História no (e do) Brasil. Uma ciência altamente especializada e institucionalizada, autônoma, fora da esfera de influência dos grupos mais elitizados, que ele reputava como conservadores, instalados no interior da incipiente Universidade brasileira. Seu projeto tinha a ver com o nacionalismo em voga no período, mas igualmente com controle, autoridade e legitimidade para definir o que seria ou não um texto histórico e como esse texto poderia contribuir para compreensão da realidade histórica nacional – que era uma tópica importantíssima para Rodrigues e sua geração.

Hoje, o cenário é bastante diverso, mas esse tipo de debate reassume centralidade. Pessoalmente, não me oponho a essa regulamentação. Penso ser um resultado quase necessário do crescimento de nossa “Área” (que hoje é muito diversificada), e da multiplicação de especialistas em nível de mestrado e doutorado. Tenho apenas uma desconfiança sobre o que essa regulamentação profissional pode, de fato, assegurar para nosso ofício frente aos horizontes históricos que temos diante de nós contemporaneamente – radicalmente diferentes daqueles que José Honório, por exemplo, mas todos os nacionalistas, viram se encerrar em 1964. Há certa dose de corporativismo envolvido no processo, mas eu penso que ele é parte, e uma bem pequena (e até salutar) de um problema muito maior e mais complexo, que é: qual o lugar das humanidades no mundo de hoje? Frente a isso, qual o lugar dos historiadores nesse mundo? Desconfio que regulamentar nossa profissionalização não resolverá esse problema que, a meu ver, é absolutamente decisivo. Quer dizer, vivemos um período crítico nesse sentido, no qual as políticas públicas referentes à educação são decididas por políticos-profissionais (gestores e administradores) levando em conta a eficiência das mesmas a partir de dados frios, muitas vezes maquiados, e chamados de “objetivos”. O fenômeno é global. O Brasil já está nesse movimento de priorizar o crescimento econômico, mensurado via PIB, há algum tempo. Em termos educacionais, isso promove uma espécie de miopia: só se pode ver e valorizar as chamadas competências lucrativas; a educação caminha a largos passos para um adestramento economicamente produtivo; isso num país extremamente desigual no qual educação e cultura nunca foram valores efetivos, e fatores de democratização, mas privilégios. Estamos nos distanciando da ideia humanística de formação crítica e compreensiva, do desenvolvimento da empatia, por exemplo, para as diferenças, frente aos marginalizados. Estamos valorizando absurdos como meritocracia, entre outras coisas. Até agora valores humanísticos sempre justificaram ou, pelo menos, ampararam a relevância da História e dos historiadores no mundo, seja como saber escolar e campo de pesquisas ou qualquer outra coisa. Se o letramento histórico pertence a esse rol de capacidades humanísticas que desaparecem dos horizontes de nossa contemporaneidade, qual o papel dos historiadores em meio a isso tudo? Preocuparmo-nos com nosso quinhão é importante, claro, não nego isso de modo algum. Regulamentar a profissão é importante em um mundo no qual essa profissão possui uma importância e um lugar social claramente definidos. Mas essas definições são também históricas e carecem sempre de renovadas respostas acerca de sua atualidade para um mundo mais democrático. Não deveríamos tomar tais posicionamentos como sempre dados, seguros, como dados inquestionáveis e autoevidentes, isto seria a-histórico da nossa parte. Será que não precisamos retomar os debates amplamente sobre qual nosso lugar no mundo de hoje? E qual o lugar e importância das humanidades, nesse sentido? Se as humanidades desaparecerem como valor de nossa vida e dos horizontes das gerações atuais e que virão, temo não haver espaço para o historiador e o professor de história, para a historiografia especializada, para o historiador nos arquivos, nos institutos de pesquisa e patrimônio etc., seja ele um profissional regulamentado ou não. O problema é muito mais grave e estrutural e nos conclama a pensarmos e formularmos novos projetos e proposições nesse sentido, em diálogo com a sociedade mais ampla, não apenas ente nós. Algo que sem análises teóricas muito intensas, temo, estaremos em breve diante de um cenário bastante adverso ao tipo de trabalho que desenvolvemos.

Clique aqui para voltar para a PARTE 1 da entrevista.

Clique aqui para ler a PARTE 3/final da entrevista.


Andre de Lemos Freixo é Doutor em História (PPGHIS/UFRJ, 2012), Mestre (PPGHIS/UFRJ, 2008) e Bacharel com Licenciatura (UFRJ, 2006) em História. É Professor Adjunto no Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Tem como áreas de interesse: História da Historiografia Brasileira, História do Brasil Republicano, Teoria e Filosofia da História. Também é coordenador do Núcleo de Estudos em História da Historiografia e Modernidade (NEHM/UFOP).

Ana Paula Tavares

Subeditora do Café História. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais da Fundação Getúlio Vargas (PPHPBC/FGV) , bolsista CNPq. Possui graduação em Comunicação Social – habilitação jornalismo pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ (2006). É formada em teatro pela Casa de Artes de Laranjeiras – CAL (2010). Estuda História Intelectual, Imprensa, Mediação Cultural na trajetória da jornalista Yvonne Jean.

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